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A história nem sempre parece histórica. Em uma manhã indescritível de um dia de semana no início deste mês, um grupo de homens e mulheres de terno entrou em um hotel em São Paulo. Algumas horas e vários litros de café depois, eles saíram em fila. Para os olhos destreinados, eles pareciam os suportes de livros de uma reunião de negócios genérica de uma cidade grande. Compre na baixa, venda na alta, ajuste esses KPIs até que estejamos todos submersos.
Mas não, este era diferente – muito mais interessante e muito mais importante. Naquele hotel, foram lançadas as bases para um plano que poderia revolucionar o futebol brasileiro.
Juntos, os presidentes de seis clubes da primeira divisão – Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Santos e Red Bull Bragantino – propuseram uma liga separatista, a ser administrada pelos próprios clubes, e não pela federação brasileira, a CBF. Eles prometeram uma melhor organização, uma estrutura comercial mais elegante e, por meio de um modelo de distribuição de receita que marcaria um grande afastamento do partidarismo habitual com unhas e dentes, uma perspectiva financeira mais brilhante para todos. Eles a chamavam de Liga do Futebol Brasileiro – Libra para abreviar.
“Esse é o futuro”, desmaiou a presidente do Palmeiras, Leila Pereira. Alguns detalhes ainda impedem um acordo unânime, mas há um cheiro de excitação vertiginosa no ar. Após décadas de mediocridade, o futebol brasileiro está à beira de seu próprio momento da Premier League – e não apenas porque os que o seguem admiram o modelo inglês com um fervor que beira o religioso.
A mudança, para o açougueiro Hemingway, acontece de duas maneiras: gradualmente e depois de repente.
Na visão widescreen, isso vem acontecendo há muito tempo. Você poderia encher um livro com os pontos fracos que travaram o jogo doméstico brasileiro ao longo das décadas, mas uma lista decente incluiria proprietários de clubes idiotas, campos de lixo, visão de curto prazo endêmica, corrupção, violência de torcedores, um calendário ultrapassado – Brasil atrasado adotou um formato de liga round-robin em 2003, mas ainda precisa reduzir os campeonatos estaduais inchados e cada vez mais irrelevantes – e as finanças que desafiam a lógica. Acrescente a federação de futebol, cuja capacidade de avançar sob o peso de seus próprios escândalos seria impressionante se não fosse tão prejudicial, e você tem uma receita perfeita para a estagnação.
As coisas melhoraram um pouco nos últimos anos, mas não o suficiente. Quando imagens de outras ligas são transmitidas aos lares brasileiros, o déficit de qualidade é difícil de ignorar. Não é apenas o futebol que é melhor – os kits são mais inteligentes, os gráficos mais chamativos, os estádios mais movimentados, a grama literalmente mais verde.
Isso corta duas maneiras. Por um lado, um jogo do Campeonato Brasileiro é mais difícil de vender para uma geração de brasileiros acostumados a assistir Manchester City x Liverpool no sábado e El Clasico no domingo. Ande pelo Rio de Janeiro hoje e é provável que você veja uma camisa do Chelsea como uma do Fluminense ou do Vasco da Gama – um fato que seria impensável (para não dizer intragável para uma certa geração de cariocas) 20 anos atrás.
Ainda assim, os clubes sempre podem contar com uma base de fãs local considerável. Talvez o maior problema seja o terreno que foi perdido na batalha por globos oculares mais distantes. A seleção do Brasil é uma instituição global, mas seu jogo doméstico mal registra além da partida ímpar da Copa do Mundo de Clubes.
“Nunca vendemos nosso futebol para o exterior”, disse Mario Celso Petraglia, presidente do Athletico Paranaense, ao The Athletic. “Nossas equipes não são conhecidas em todo o mundo. Isso é um fracasso terrível.”
Os proponentes da nova liga esperam que ela resolva isso – inicialmente vendendo pacotes de direitos de TV de forma mais agressiva no exterior, mas também melhorando o próprio “produto”, de modo que possa competir com a Ligue 1 ou, eventualmente, a Serie A ou a Bundesliga.
Isso, claramente, é muito mais fácil dizer do que fazer. Mesmo no melhor cenário, provavelmente estamos falando de décadas em vez de anos. Mas há um novo impulso aqui. Nova energia também, graças a um conjunto de fatores aceleradores.
Um deles é um novo modelo de propriedade que foi pensado especificamente para clubes de futebol, prometendo torná-los mais corporativos, mais sustentáveis e até – sussurre baixinho – lucrativos. Outra é a recente entrada de investimentos estrangeiros em clubes brasileiros. John Textor, co-proprietário do Crystal Palace, adquiriu o Botafogo no início deste ano; O 777 Partners, com sede em Miami, assumiu o controle acionário do Vasco; A Red Bull colocou recursos significativos em Bragantino. O City Football Group também tem observado atentamente o Bahia, e quem acompanha de perto as finanças do futebol acredita que novas aquisições são inevitáveis.
Acima de tudo, há a maré de profissionalismo que lavou algumas teias de aranha nos corredores do poder. Se o elenco de personagens que se reuniram naquele hotel paulistano parecia estudioso de cálculos numéricos, é porque é exatamente isso que eles são. Os chefões fanfarrões de antigamente são agora uma raça em extinção.
“Os donos de clubes eram amadores populistas”, explica Rodrigo Capelo, que cobre o lado financeiro do futebol brasileiro para o jornal O Globo. “Eles nem sempre foram os mais intelectuais. A nova onda é um pouco diferente. Eles são empresários racionais.”
Há amplo consenso de que os próprios clubes, em conjunto com investidores e consultores externos, podem fazer um trabalho melhor na organização de um campeonato do que a CBF. Mas o sucesso da Libra acabará sendo julgado pela dança do ovo e da galinha dos lucros e do produto: se as receitas aumentarem, os clubes podem colocar mais dinheiro em seus campos e equipes de jogo, o que deve melhorar o futebol, o que deve atrair mais torcedores , o que deve aumentar as receitas e assim por diante.
A influência da nova liga está na formalização de um acordo coletivo de trabalho. Desde 2011, quando um bloco de grandes rebatedores chamado Clube dos 13 se desfez, os clubes brasileiros assinaram contratos de transmissão individualmente. À primeira vista, isso foi bom para jogadores como Flamengo e Corinthians, que podiam lucrar com suas enormes bases de fãs em todo o Brasil, mas deixou o ecossistema como um todo fragmentado e enfraquecido. Foi particularmente desastroso para os clubes menores, aumentando a distância entre ricos e pobres.
As coisas melhoraram um pouco em 2019, quando os clubes começaram a distribuir uma parte das receitas da TV igualmente. Isso ajudou equipes modestas como Ceará e Fortaleza a se consolidarem depois de serem promovidas à primeira divisão. Mas como a renda do pay-per-view não fazia parte desse acordo, persiste uma desigualdade significativa. Acrescente as competições de copas nacionais e internacionais, que naturalmente favorecem também as melhores equipes, e o quadro fica ainda mais sombrio. De acordo com um relatório da Ernst & Young, um quarto de toda a receita de TV recebida pelos clubes brasileiros entre 2017 e 2021 foi para apenas dois times – Flamengo e Palmeiras. “Um abismo financeiro”, chamou o presidente do Fluminense, Mario Bittencourt, e é difícil discordar.
Agora, porém, há uma chance de restabelecer o equilíbrio. Sob Libra, toda a receita de transmissão, incluindo a de pay-per-view, seria agrupada para compartilhamento de receita. Quarenta e cinco por cento do total seria dividido igualmente entre os 20 clubes da Série A; 30 por cento seriam distribuídos de acordo com o desempenho da liga; 30% seriam divididos de acordo com uma série de fatores de engajamento e audiência.
Houve um debate acirrado sobre esses números na última quinzena. Até agora, apenas 10 dos 40 clubes das duas principais divisões se juntaram à Libra. Os demais se uniram para exigir condições mais favoráveis. Eles querem que a proporção seja 45:30:25 em vez de 40:30:30. Eles querem que o próprio pedaço baseado em desempenho seja mais igualitário e mais dinheiro para a Série B.
No entanto, estes parecem obstáculos superáveis. Afinal, o efeito global mesmo das medidas mais conservadoras, segundo os cálculos de Capelo, constituiria um importante nivelamento do campo de jogo. Em 2019, última temporada antes do COVID-19, o Flamengo, que venceu o Campeonato Brasileiro, ganhou nove vezes mais que o Avaí, que terminou em 20º. Mesmo nos últimos dois anos marcados pela pandemia, o múltiplo foi entre seis e sete. Sob Libra, cairia abaixo de quatro.
Não é de admirar que mesmo os resistentes estejam otimistas. Veja Marcelo Paz, presidente do Fortaleza, que, apesar de ainda não ter se inscrito, chama a nova liga de “uma necessidade” e está visivelmente animado com os potenciais benefícios para clubes como o dele.
“Este será um ponto de virada para o futebol neste país”, disse Paz ao The Athletic. “Finalmente estamos adotando o mesmo modelo que os melhores campeonatos do mundo usam. É um grande passo à frente.
“Falamos muito sobre o modelo inglês. Veja o Aston Villa: é um clube do meio da tabela, mas pode comprar Philippe Coutinho, jogador do Brasil. Esta nova liga representa um melhor negócio para as equipes do meio da tabela; isso os ajudará a ser mais competitivos e alcançar novos patamares”.
Não é tão óbvio o que Flamengo e Palmeiras podem ganhar aqui. Graças em grande parte ao trabalho experiente em nível de diretoria, ambos entraram em ciclos virtuosos de crescimento e sucesso na última década, afastando-se do grupo de perseguidores a tal ponto que alguns no Brasil – ironicamente, dada a atual deificação da La Liga estrutura financeira – preocupado com a “espanificação” da liga. Por que eles desistiriam desse tipo de domínio?
Evidentemente, não é um ato de caridade. A aposta deles é de longo prazo: sacrificando um pouco agora, eles podem trazer ainda mais dinheiro mais adiante. E talvez, com um pouco de sorte, se tornem marcas globais como Barcelona, Bayern de Munique e Juventus.
Há o reconhecimento de que o atual conjunto de acordos individuais de TV é muito confuso, muito fragmentado para ser uma proposta atraente para, digamos, um serviço global de streaming como a Amazon. Aceitação, também, de que os torcedores da Europa e dos EUA estarão mais interessados em assistir Flamengo x São Paulo se as arquibancadas estiverem cheias, a apresentação manhosa e o São Paulo realmente competitivo.
De fato, o que é especialmente animador nas discussões atuais é que elas são sustentadas pela humildade, não pelo orgulho mudo e insular que levou o ex-chefe da CBF José Maria Marin a declarar, ainda em 2013, que “não temos nada a aprender De outros países”. Existe agora uma vontade de olhar para o mundo e adotar as melhores práticas de outros lugares. E, sim, um reconhecimento tardio de que o Brasil está preso atrás da bola oito há muito tempo.
“Estou muito animado”, diz Capelo. “Até recentemente, quando as pessoas falavam sobre como funcionavam as grandes ligas europeias, era puramente teórico. O futebol brasileiro manteve seu próprio ritmo. Perdemos muito tempo andando em círculos.
“Agora, finalmente, todos os presidentes de clube estão alinhados. Essa é uma diferença enorme em relação a antes. Isso pode ajudar os clubes de pequeno e médio porte a se tornarem financeiramente estáveis, o que eles nunca tiveram no Brasil. Depois disso, há outras questões a serem abordadas: a reorganização do calendário e dos campeonatos estaduais; jogo limpo financeiro. Mas você não pode fazer nada disso sem ação coletiva. Este é um passo fundamental.”
Petraglia, presidente do Athletico Paranaense, é ainda mais enfático. “O futebol brasileiro está acorrentado”, conclui. “Isso será uma libertação.”